Diário de Coimbra, 22.dez.2013
1. A Comissão Diocesana Justiça e Paz tornou pública, esta
semana, a Mensagem “Trabalho digno para todos”. Textos deste tipo são,
naturalmente, fruto de consensos e podem, por isso, ficar reféns do senso
comum. Cabe, então, perguntar: para quê publicar aquilo que já é do senso
comum? Porque o senso comum, sobretudo quando reflete a consensualidade sobre
matérias tão graves e incertas, representa um bem de alto apreço sempre
necessitado de ser atendido, reelaborado, reformulado e reapresentado.
Necessidade que advém não só da mudança permanente da cultura e das situações,
mas também da constatação de que o senso comum não é necessariamente o senso
que preside às tomadas de decisão políticas, económicas, sociais e financeiras,
ou de que não é necessariamente o tipo de senso que marca a agenda da cives, tão atraída pelas questões
“fraturantes” e outras singularidades. Por outro lado, sendo embora uma
mensagem que diretamente apenas responsabiliza cada um dos membros da Comissão,
não deixa de ser, indiretamente, uma voz que testemunha o olhar e a solicitude
da própria Igreja de Coimbra para com as “alegrias e as esperanças, as tristezas
e as angústias” das pessoas e do mundo no momento presente. Afinal, é isso o
que Natal celebra na sua matriz cristã: a solicitude de Deus para com o mundo,
a ponto de se encarnar nele. “Trabalho digno para todos” é uma mensagem sobre o
trabalho humano, mas não deixa de ser, a seu modo, uma mensagem (quase) de
Natal.
2. A literatura universal é rica de expressões que associam
o natal aos pobres. É uma leitura que
hoje se está a perder, talvez por duas razões principais: por um lado, esvaziou-se
o sentido religioso do natal; por outro, os pobres foram excluídos do discurso
politicamente correto.
A literatura reflete a vida, o pensamento. Esta ligação do
natal aos pobres é mais do que ficção; é expressão de uma sociedade que num
certo tempo assumiu o natal como o contexto por excelência do cuidado aos
pobres. A ideia antiga até era simples, embora só se entenda numa sociedade
vincadamente cristã: incarnando em Jesus de Nazaré, o Filho de Deus esvaziou-se
de todo e qualquer tipo de poder específico de Deus. Empobreceu-se. Desceu do
seu pedestal divino e trilhou caminhos de libertação com os homens, armado
unicamente das capacidades próprias da natureza humana. Similarmente, esse
seria o mais profundo amor aos pobres, esse duplo movimento de descida do meu
patamar até ao nível do patamar do outro que foi e permanece violentado,
despojado e espoliado dos direitos e garantias próprias da dignidade humana, para
logo encetar um novo elevamento, uma reconstrução comum da vida, na libertação
da pobreza, com o pobre e a partir do pobre.
Hoje estamos possuídos por outras mundividências. Quiçá,
mais críticas, mais revolucionárias; ou talvez não! Em rigor, sentimo-nos
perdidos num caldo cultural morno e confuso, onde o relativismo de todos os
valores nos rouba a capacidade de compromisso, a ideologia do mercado nos faz
desacreditar da luta pela mudança social e a guerra da sobrevivência
competitiva nos rouba o amor. Com estes traços, um natal que poise os seus
olhos com ternura e compromisso sobre os pobres parece impossível. E, todavia,
os pobres estão aí.
Quem sabe se os pobres um dia nos vão ajudar a ver que há
outros valores por que lutar e outros critérios por que se conduzir, que nos
tornem mais humanos, mais fraternos, mais felizes?! E que o Natal poderá ser a
celebração da maravilha?! Quem sabe se não vamos ficar a dever isso aos pobres;
ou se já não o estamos a dever?! Feliz Natal.
Carlos
Neves
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