segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Trabalho digno para todos


MENSAGEM POR OCASIÃO DO ADVENTO/NATAL 2013

Contexto
A Comissão Diocesana Justiça e Paz (CDJP) de Coimbra, criada em plena propagação da atual crise (janeiro de 2010), viu-se necessariamente implicada na reflexão permanente sobre as suas consequências económicas, financeiras e sociais. Fê-lo na humildade de quem percebe que há uma “mudança de paradigma em curso” e que, por isso, as respostas não estão todas dadas; mas também consciente de que há valores éticos irrenunciáveis e irredutíveis aos tempos e às conjunturas, pois “o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a atividade económica” (GS 63[i]). Como resultado dessa reflexão, foram publicadas duas “mensagens”[ii] e promovido este ano, em parceria, um debate sobre “A Mudança no Mundo do Trabalho”[iii].

A presente mensagem “Trabalho digno para todos” insere-se nesta reflexão. A extrema gravidade que o desemprego, o trabalho precário e a exploração laboral apresentam e potenciam na vida pessoal, familiar, social e mesmo nas relações internacionais, justifica que voltemos a partilhar com a comunidade as nossas inquietações e esperanças sobre esta realidade, sob o enfoque da doutrina social da Igreja e em união com muitas vozes autorizadas do mundo académico e político, com a Igreja universal e com a Igreja em Portugal[iv]


Uma leitura “global”

a) Efeitos do mercado global
O mercado, à medida que se foi tornando global, estimulou antes de mais nada, por parte de países ricos, a busca de áreas para onde deslocar as atividades produtivas a baixo custo”, gerando uma competição entre Estados para atrair empresas estrangeiras, através da desregulação do mundo do trabalho e do abaixamento dos salários (cf CV 25). Por sua vez, os produtos produzidos a preços mais baixos nesses países entram em concorrência com os produtos dos países ricos, levando à falência de empresas, à explosão do desemprego e à ruína das redes de segurança social, quer públicas, quer corporativas. Assim, o capital acumula-se nas mãos de muito poucas empresas que, valendo-se do seu gigantismo, impõem diretrizes políticas e sociais (nomeadamente, uma vez mais, a descida dos salários e das contribuições sociais), para, finalmente, distribuírem impressionantes dividendos pelos seus acionistas e pagarem principescamente aos seus gestores de topo. Acresce que o enorme incremento tecnológico, na sua expressão informática e robótica, permite obter grandes ganhos de produtividade com cada vez mais reduzida de mão-de-obra, o que agrava o risco de desemprego. Em consequência do desemprego massivo e prolongado e da fragilidade das redes de segurança social, a pobreza alastra e agrava-se, e a imposição da mobilidade humana surge de forma abrupta e inesperada provocando o aparecimento de múltiplas situações que “corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual” (cf. CV 26).

Nunca como agora se decidiu tanto, em tantas instâncias diferentes, em função dos interesses financeiros, sem qualquer respeito pelo enorme custo que representa para a esmagadora maioria da humanidade um mercado sem valores e sem regras. A simples constatação de que 95% das transações no mundo são sobre o capital financeiro e apenas 5% sobre a produção de bens de consumo ilustra à saciedade a distorção, a desfocalização relativamente às pessoas concretas e a manipulabilidade do mercado.

b) A situação em Portugal
Portugal espelha estes efeitos, quer relativamente às grandes economias mundiais, quer no plano interno, relativamente às grandes empresas comerciais e financeiras. Acresce que Portugal tem um défice estrutural das contas públicas, que fragiliza o país diante dos credores externos, os quais - em nome da competitividade erigida como valor central do mercado - tendem a condicionar a política interna do nosso país no mesmo sentido do crescimento do desemprego, do abaixamento dos salários e da diminuição da segurança social aos cidadãos. Paralelamente a este empobrecimento generalizado da população, cresce o número dos muito-ricos, evidenciando que o desequilíbrio social nasce efetivamente do jogo financeiro e da imposição pelos mais fortes de mecanismos perversos na economia e no mercado de trabalho, e tende a consolidar-se com algo de inevitável sem ter em consideração a dignidade das pessoas nem o bem comum. Neste contexto, as próprias medidas políticas concretas, mesmo quando envolvem grandes quantitativos financeiros, resultam largamente ineficazes: por exemplo, as chamadas “medidas ativas de emprego” têm obtido apenas 2% de empregabilidade dos beneficiários! Esta situação é geradora de uma forte instabilidade nas gerações mais novas, afetando praticamente todas as dimensões da sua vida, e de um sentimento generalizado de insegurança face ao futuro, que atravessa todas as gerações, criando um risco de conflitualidade social e geracional agravadas.

“A falta de trabalho faz-nos sentir sem dignidade”
De facto, ao lado de uns poucos muito ricos, há uma “multidão incontável” que sofre “dores indiscritíveis” geradas por estes “mecanismos perversos”. Uns, no desemprego, sofrem as dores da pobreza, da degradação pessoal, da perturbação psicológica, da marginalização social; muitos outros, dos que mantêm um emprego, sofrem as dores da exploração inequívoca, da redução da sua dignidade a peças produtivas, da luta pela sobrevivência numa competição com os próprios pares, desregrada, agressiva e irracional. É uma “tragédia” com uma causa identificada, nas palavras do Papa Francisco: “A falta de trabalho faz-nos sentir sem dignidade. E esta tragédia é a consequência de um sistema económico que colocou no seu centro um ídolo chamado dinheiro” (Sardenha, 22.09.2013).

Mudança e vigilância pessoal
Neste cenário, não deixa de nos entristecer a enorme indiferença, quando não mesmo palavras e comportamentos discriminatórios e acusatórios, em relação às vítimas do desemprego, do endividamento e de todas as formas de empobrecimento da atualidade, “cuja amarga condição resulta frequentemente ignorada pelo olhar distraído da sociedade” (CV 64). Não podemos deixar que a globalização da indiferença nos tire a capacidade de chorar (cf. Papa Francisco em Lampedusa, 08.07.2013). A par da condenação ativa das “estruturas de pecado” no mundo do trabalho dos nossos dias, que criam massivamente a pobreza, a insegurança e a destruição dos valores mais universais, como a justiça e a verdade, é urgente também amarmos com um coração amplo e apaixonado todas as vítimas. Elas precisam do nosso amor.

Mas o olhar atento rapidamente percebe que não basta tentar suavizar pontualmente as feridas dos que estão a ser triturados; é necessário pôr em causa, criticamente, todo o modelo. Isso significa, desde logo, por um lado, uma cuidada vigilância sobre as nossas atitudes e comportamentos, de modo a evitar reproduzir ou alimentar nas nossas relações sociais e profissionais os mecanismos mais desumanos do sistema económico e, por outro lado, uma opção persistente e consistente por colocar no centro do mundo do trabalho a dignidade inviolável da pessoa humana, de cada pessoa humana concreta (cf GS 63). Como disse muito recentemente o Papa Francisco, “uma mudança nas estruturas sem criar novas convicções e atitudes dará lugar a que essas mesmas estruturas tarde ou cedo se tornem corruptas, pesadas e ineficazes” (EG 189).

Participar e empreender, sobretudo na vida das empresas
Por outro lado, num tecido económico como o português, marcado pela prevalência de pequenas e médias empresas, a crise ajudou a perceber que as mesmas, como um todo – capital e trabalhadores – são vítimas imediatas dos referidos “mecanismos perversos” do liberalismo económico nacional e internacional. Queremos acreditar que a urgência da salvação das próprias empresas há de gerar novas formas de participação dos trabalhadores na gestão das mesmas e que essa experiência inclusiva do trabalho vai ser um grande fator de segurança e crescimento da economia no futuro. Convidamos, com toda a convicção, o mundo empresarial – capital, gestores e trabalhadores – a apostarem decididamente nesta união de esforços pela produtividade das suas empresas e na equitativa repartição dos lucros por todos, como fator de justiça e coesão. Do mesmo modo, pesem os riscos agravados da situação presente, tomamos a ousadia de lembrar a quem tem qualidades empresariais e acesso ao capital o grave dever de ser empreendedor, criando empresas, riqueza, postos de trabalho, e coparticipando, assim, com o próprio Deus na criação de um Reino novo, pondo a render os talentos que d’Ele recebeu.

Poderes políticos instituídos
Aos poderes políticos legitimamente instituídos pede-se o empenho na regulação da atividade económica, consistentemente orientada para a justa distribuição da riqueza criada entre o capital e o trabalho e para a solidariedade nacional para com as pessoas que, por razões de saúde, velhice ou outras, estão marginalizadas do processo produtivo. Mais: no presente contexto, em que o mercado e a sociedade civil não conseguem satisfazer eficazmente o direito ao trabalho dos cidadãos, afigura-se exigível que o Estado intervenha ativamente no mercado de trabalho, como potenciador e, eventualmente, como criador de empregos.

Cabe ainda aos poderes políticos, nos múltiplos fóruns internacionais em que participam, a luta permanente pela criação de condições mundiais para a humanização do trabalho e para o comércio justo entre as nações, salvaguardando a dignidade e segurança dos trabalhadores, o bem coletivo dos povos e a saúde do próprio planeta. Tal objetivo conseguir-se-á, como o ensinamento social da Igreja vem sugerindo desde há várias décadas, pela regulação internacional, pela criação de mecanismos de observação e controlo internacional e, certamente, pelo poder coercivo de tribunais especializados.

Para um mundo de rosto humano
Retemos as palavras do Papa Francisco: “Esta economia mata. (…) Enquanto os lucros de poucos crescem exponencialmente, os da maioria situam-se cada vez mais longe do bem-estar daquela minoria feliz. Tal desequilíbrio provém de ideologias que defendem a autonomia absoluta dos mercados e a especulação financeira. Por isso, negam o direito de controlo dos Estados, encarregados de velar pela tutela do bem comum. Instaura-se uma nova tirania invisível, às vezes virtual, que impõe, de forma unilateral e implacável, as suas leis e as suas regras. Além disso, a dívida e os respetivos juros afastam os países das possibilidades viáveis da sua economia, e os cidadãos do seu real poder de compra. Não a um dinheiro que governa em vez de servir”. (cf EG 53; 56).

Pese a gravidade da situação, estamos seguros de que a “mudança de paradigma” em curso não tem de ser necessariamente um momento negativo na história humana e pode conter o gérmen duma nova sociedade mais justa que vá ao encontro das expectativas de largas camadas da população que em todo o planeta sofrem a iniquidade da pobreza, da fome, da doença e do desemprego. Mas só o poderá ser se o respeito por cada homem e cada mulher for a alavanca duma transformação social e económica de rosto humano na qual todos tenham lugar. A dignidade e liberdade humanas são critérios de vida acima dos ditames dos mercados financeiros.

Reconhecemos a particular responsabilidade daqueles sobre quem recai o ónus da decisão num tempo tão complexo. Mas as decisões, em razão da própria natureza da comunidade política, e mais ainda em contexto de crise, nunca podem ser fruto de uma pequena elite de poder, seja por obstaculização ao comum dos cidadãos, seja por omissão destes. Exige-se, por isso, a participação de todos no debate público, franco e aberto. Aos católicos, em particular, em razão dos valores com que iluminam as suas vidas, é exigível uma intervenção pública de diálogo, cooperação e serviço que ajude a humanizar o nosso mundo pelos caminhos da justiça e da paz.

Deste modo, urge sobremaneira lutar pelo acesso universal ao trabalho, enquanto meio de sobrevivência e de realização humana, pela sua remuneração digna e pela humanização das condições e relações laborais em razão do bem da pessoa e da comunidade. Porque, cumpre a todos, indivíduos e instituições, fazer – de acordo com as respetivas capacidades e responsabilidades e no respeito intransigente pela dignidade da pessoa humana e pelo destino universal dos bens –, tudo quanto esteja ao seu alcance em ordem à construção do bem comum.




A Comissão Diocesana Justiça e Paz


Abel da Conceição dos Santos Pinto, Alberto Lopes Gil, Carlos Alberto das Neves Joaquim, Carlos José Rodrigues de Paiva, João Luís Pereira Soeiro de Campos, José António Henriques dos Santos Cabral e Maria Teresa dos Reis Pedroso de Lima Oliveira.






[i] As siglas GS, CV e EG referem-se respetivamente aos documentos do magistério Gaudium et Spes, Caritas in Veritate e Evangelii Gaudium.


[ii] “Esperança e Critérios de Vida” (17 de junho de 2010); “Desemprego e Confiança” (1 de maio de 2012).


[iii] A Conferência “A mudança no mundo do trabalho”, em parceira com o Instituto Universitário Justiça e Paz e o Conselho Distrital de Coimbra da Ordem dos Advogados, ocorreu a 3 de dezembro, e foi preparada por debates que envolveram ordens e associações profissionais e académicas, partidos políticos e outras estruturas da sociedade civil.


[iv] Desta reflexão eclesial, releva a encíclica Caritas in Veritate, de Bento XVI (junho, 2009), o discurso do Papa Francisco aos trabalhadores, em Cagliari (setembro, 2013), a recente mensagem “Desafios éticos do trabalho humano” da Conferência Episcopal Portuguesa (Novembro, 2013) e a nota “Portugal: austeridade desumana é inaceitável”, da Comissão Nacional Justiça e Paz. Fora do âmbito eclesial, e atendo-nos apenas à específica denominação "Trabalho digno para todos", relevam alguns programas da OIT, de estruturas empresariais e sindicais e diversos estudos académicos, entre outros.

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