domingo, 24 de novembro de 2013

Dar prioridade à pessoa

(Diário de Coimbra, 24.nov.2013)
 
O respeito pela dignidade de cada pessoa, durante todo o processo de prestação de cuidados de saúde e desde o início e até ao fim da vida, constitui uma das concretizações do reconhecimento da dignidade de cada ser humano, inscrito na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela Resolução n.º 217 A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 10 de dezembro de 1948.

Do juramento de Hipócrates (sec. V antes de Cristo) emana uma das mais antigas formas do reconhecimento médico da dignidade de cada doente, desde a formulação original até à adotada na 173.ª Sessão do Conselho da Associação Médica Mundial, Divonne-les-Bains, França, maio de 2006.

A dignidade de cada pessoa pode ser fundamentada de forma condicionada, considerando-a dependente da realização e desenvolvimento de certas qualidades intelectuais e morais e apreciando-a sob critérios de finalidade, utilidade social, conveniência ou capacidade. Numa subordinação à ideia de natureza humana (ontológica, isto é, do ponto de vista do ser), a dignidade de cada pessoa é independente de fatores externos (do exercício de faculdades intelectuais ou morais) e de convenções sociais. Nesta perspetiva e recordando João Paulo II, “o ser humano é sempre um valor em si e por si” e a dignidade de cada pessoa “constitui o fundamento da igualdade de todos os homens entre si” (cf. Exortação Apostólica «Vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo», ChL 37).

A Constituição da República Portuguesa (CRP) define o princípio da igualdade ao estatuir que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” e que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual” (cf. artigo 13.º). Além disso, determina também que o “âmbito e sentido dos direitos fundamentais consagrados na Constituição não excluem quaisquer outros constantes das leis e regras aplicáveis de Direito Internacional” e que “os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais devem ser interpretados de harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem” (cf. artigo 16.º).

Constituem emanações do direito ao respeito pela dignidade pessoal os artigos 1.º (proteção do ser humano na sua dignidade), 2.º (primado do ser humano sobre o interesse da sociedade) e 3.º (acesso equitativo aos cuidados de saúde) da Convenção para a Proteção da Dignidade do Ser Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001, de 3 de janeiro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 1/2001, da mesma data.

A Lei de Bases da Saúde (LBS) - Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, enumera os direitos dos utentes do sistema de saúde português sem referência explícita ao respeito pela sua dignidade pessoal, embora dele proceda grande parte dos direitos enunciados, tais como, “que os serviços públicos de saúde se constituam e funcionem de acordo com os seus (dos utentes) legítimos interesses”, “decidir receber ou recusar a prestação de cuidados proposta”, “ter rigorosamente respeitada a confidencialidade sobre os dados pessoais”, “ser informado sobre a sua situação, as alternativas possíveis de tratamento e a evolução provável do seu estado” e “receber assistência religiosa” (cf. bases V e XIV).

Qualquer que seja a opção de política de saúde e o modelo de organização adotado pelas autoridades governativas, o respeito pela dignidade pessoal dos utentes exige, em primeiro lugar, que o sistema de saúde assegure a justiça e a equidade no acesso aos cuidados de saúde, sem privilegiar pessoas por razões de origem, de natureza económica ou outras.

Para além destas implicações de caráter geral, o respeito pela dignidade pessoal dos utentes dos serviços de saúde implica que os profissionais de saúde, independentemente da sua opinião sobre a organização dos serviços e da sua disposição psicológica momentânea, acolham cada utente com todas as suas características, incluindo as anímicas (expectativas, ansiedade, sofrimento).

Numa formulação abrangente, poderemos referir, em síntese, que cada potencial utilizador de serviços de saúde tem direito ao respeito pela sua individualidade específica, em tudo aquilo que a caracteriza - idade, sexo, origens, fragilidades, limitações, convicções filosóficas e religiosas, orientação sexual -, durante todo o processo de prestação de cuidados de saúde e desde o início e até ao fim da vida.

Tudo isto significa, em resumo, que em saúde e em todas as áreas da atividade social é fundamental “dar prioridade à pessoa”, tal como o referiu, há pouco tempo, o papa Francisco, neste caso, no contexto do mundo do trabalho (Discurso aos Trabalhadores em Cagliari, 2013-set.-22).

Carlos Paiva

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