domingo, 24 de fevereiro de 2013

Bem comum bem tratado


Diário de Coimbra.24.fev.2013

De acordo com notícia, quase despercebida, de dezembro passado, na Região Centro, entre 2005 e 2011, a nenhuma criança foi transmitido o vírus da síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA) de que a sua mãe era portadora. Este feito, conseguido num universo de 116 crianças, é muito significativo na medida em que antecipa a concretização de uma meta da ONU, projetada para 2015, e porque a Região Centro é a única do país a conseguir tal resultado, quando a média nacional é de 1,85% de transmissões.

Para além dos números, há a destacar a enorme dificuldade em conseguir resultados significativamente bons nesta área de prestação de cuidados, dada a natureza das situações socias e de saúde em que se intervém. Este êxito foi, efetivamente, alcançado graças ao trabalho de profissionais integrados em equipas multidisciplinares muito coesas e bem coordenadas e à colaboração empenhada e compreensiva de várias instituições públicas e privadas.

Apercebermo-nos de que a dignidade das mães e das crianças é respeitada até às últimas consequências. Efetivamente, a equipa responsável, insatisfeita com o resultado já atingido, alarga os seus horizontes e, complementarmente, preocupa-se em assegurar a maior longevidade possível das mães, evitando, assim, a orfandade precoce dos seus filhos.

Os objetivos são límpidos: salvar vidas e melhorar a qualidade de vida de pessoas em risco. É gratificante verificar que o bem comum é assim corretamente tratado e é também preciso enaltecer o que corre bem, sobretudo nesta conjuntura tão depreciativa que nos envolve.

No atual quadro de restrições económicas e de desvalorização de tudo quanto é serviço público, é legítimo perguntar se estes objetivos ou outros melhores seriam alcançados ou alcançáveis se a atividade de prestação de cuidados de saúde a estas mães e seus filhos estivesse confiada, unicamente, a empresas privadas.

Oxalá (“Deus queira”, no original em árabe) as entidades tutelares avaliem o projeto pelo lado dos seus benefícios humanos e prodigalizem os recursos necessários para que o mesmo prossiga e se melhorem os resultados a nível nacional, em vez de aplicarem, com é tão comum nos tempos que correm, critérios de cariz unicamente económico, que teriam mais em conta, por exemplo, o aumento direto do produto interno bruto (PIB) resultante das vidas salvas ou melhoradas, a possibilidade futura de aumento das exportações ou a redução do défice do setor público.

Em sentido semelhante, é louvável o esforço, efetuado pelas entidades competentes, no sentido de expurgar do “mercado” as substâncias contidas em produtos vendidos nas “smart shops”, pomposamente designadas por “drogas legais”, embora a lentidão de processos tenha permitido a verificação de mais casos de intoxicação de jovens.

Carlos Paiva

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Dos tribunais e da crise



Diário de Coimbra, 17.fev.2013

Neste tempo de crise somos convocados para, com o nosso esforço, colmatar erros passados. A dimensão de tal exigência repercute-se directamente no esbater de uma forma de vida que se tinha por adquirida e na afronta feita às gerações futuras, hipotecadas pelo presente.

Fomos conduzidos até aqui, não por culpa própria, como tantas vezes se pretende, mas, essencialmente, em virtude de decisões políticas incorrectas e de actos de natureza criminal. As primeiras geram a responsabilidade política cuja sanção se exerce no voto com que cada um de nós avaliza, ou não, o exercício do poder politico que é feito em nosso nome. A segunda ordem de responsabilidades, de natureza criminal, tem lugar nos tribunais e decorre da legitimidade constitucional que a estes assiste para julgar todos aqueles a quem é imputada a violação dos bens jurídicos nucleares na vida em comunidade.

Na forma eficiente como os tribunais respondam aos desafios lançados por este tipo de criminalidade constrói-se, também, a sua legitimidade. Na verdade, quando se fala sobre o Poder Judicial, ou sobre a crise do sistema judicial, está subjacente a questão da legitimidade dos Tribunais ou da existência de um “deficit” de legitimação democrática da jurisdição. Aos Tribunais compete o desempenho de uma função de garantia, da efectividade dos direitos fundamentais e, em geral, da observância da legalidade e a sua legitimidade adquire-se (ou não) pelo correcto exercício da função dentro dos parâmetros constitucionais e legais. Falamos, assim, de uma legitimidade pelo procedimento.

Dito por outra forma e de modo mais seco:- para todos aqueles a quem hoje são pedidos sacrifícios, e aos jovens de amanhã que irão arcar com o ónus do presente, é uma questão de Justiça que os Tribunais actuem de forma eficaz no julgamento daqueles que, deliberadamente, se locupletaram á custa de todos os outros.

No que respeita não nos descansam as noticias que chegam, indo desde o arquivamento da investigação por corrupção numa Câmara, em processo pendente há mais de onze anos, até ao prolongar do julgamento do processo com a audição de doze testemunhas em vinte e quatro meses e com trezentas testemunhas por inquirir, passando pelo processo com dezenas de recursos dilatórios para evitar o cumprimento da pena de prisão.

Esquecemo-nos demasiadas vezes que a eficiência da Justiça penal é um valor nuclear no Estado de Direito, fundamentando a confiança dos cidadãos no funcionamento do regime democrático. Infelizmente as últimas décadas da nossa história judiciária não têm sido particularmente felizes no combate a uma criminalidade que corrói os alicerces do mesmo Estado e, olhando para o destino de um vasto elenco de processos, é todo um mar de dúvidas que nos invade relativamente à eficácia do sistema.

É certo que se constata a realização de dezenas de conferências, debates e colóquios sobre os mais decantados temas ligados á criminalidade económica, nomeadamente sobre a corrupção, a que acrescem simbólicas declarações do poder político e, até, de responsáveis judiciais. Porém, na prática pouco, ou nada, mudou num limbo em que as prescrições combinam com o penoso arrastar processual.

Em lugar da linearidade conducente a um concreto apuramento de responsabilidades é todo um jogo circular, entediante e confuso, num rendilhado processual em cenário de “sombras chinesas” no qual o que parece tem mais força do que aquilo que realmente é. O resultado é uma desconfiança latente na opinião pública e visível no lugar ocupado pelo país nos índices de Percepção da Corrupção e nos relatórios de organizações internacionais.

Para que a responsabilização por este tipo de criminalidade apresente melhores resultados é necessário uma outra visão estratégica, e de Estado, que tenha a noção precisa da importância que assume o sucesso do combate á corrupção, e seus afins, na sanidade do regime democrático. Não é possível, em simultâneo, pedir mais sacrifícios a cada cidadão para pagar erros de terceiros e omitir qualquer notícia sobre a forma como despareceram milhares de milhões de Euros que, agora, aquele mesmo cidadão é chamado a pagar.

Um dos caminhos práticos para atingir tal finalidade passa pela aplicação de regras básicas de gestão como é a criação de uma única entidade que centralize a tarefa de combate á criminalidade económica e na qual se encontrem os melhores Magistrados; os melhores Investigadores e os melhores Peritos, dotados dos adequados meios a nível legal e operacional. Acresce a necessidade de tribunais especializados onde estejam Juízes com experiência e conhecimentos numa área de tão grande exigência, munidos de Códigos aptos a enfrentar os desafios de uma criminalidade do século XXI.

O desafio que o poder político enfrenta neste momento é de demonstrar perante nós, cidadãos, que o combate á corrupção não é uma mera figura de retórica, mas sim uma exigência ética e uma questão de sobrevivência do regime democrático. 
 
José Santos Cabral

domingo, 10 de fevereiro de 2013

O problema dos católicos

Diário de Coimbra, 10.fev.2013

No cinquentenário da iniciativa mais marcante da Igreja de Roma nos últimos séculos – o Concílio Vaticano II – Bento XVI convocou os católicos para a celebração de um Ano da Fé, que decorre desde outubro. Mas, claro, o cinquentenário é só um pretexto! O que a Igreja católica está verdadeiramente a celebrar é o desafio de se auto-perceber no primeiro quartel do século XXI.

Para a Igreja a vida não está fácil. Por muitas razões: por resquícios de um ateísmo sistemático dos séculos XIX e XX, por escândalos religiosos como a pedofilia, por uma “concorrência” bastante agressiva de outras agremiações religiosas, por expansão fundamentalista ainda de outras, por alguma cedência dos crentes à privacidade da fé ou à desesperança, e por aí fora… Mesmo quando se evocam alguns países da América latina, da África ou da Ásia como focos de crescimento de padres e freiras…, a sensação de desconforto e debandada prevalece. Até porque continua a ser o Norte a marcar o sentido da evolução cultural do mundo, e no Norte o movimento cultural é de insignificação progressiva da Igreja católica. Ao longo da história, a Igreja enfrentou muitas dificuldades: debateu-se com culturas poderosíssimas que a tinham por inimiga, foi perseguida por forças políticas e servilizou-se a outras, foi confrontada com sucessivas vagas de caos social, foi combatida por filósofos e sábios. Mas sempre ressurgiu mais fortalecida dessas dificuldades: enculturou culturas e aculturou-se a outras, gerou modelos de virtude, foi agente de justiça e de paz, foi pão e saúde para milhões de infortunados, gerou sabedoria e valores universais. De facto, fosse como amiga ou fosse como inimiga, a Igreja sempre teve algum ponto de contacto forte com o mundo! E por esse ponto de contacto se afirmou e se refortaleceu. Só que agora a sensação é a de que não há mais nenhum elo de contacto entre a Igreja e o mundo. 

O mundo ignora a Igreja, e a Igreja não está preparada para lidar com essa indiferença. A cultura que omite as perguntas sobre o sentido, as causas ou as finalidades, deixa a Igreja especada no meio da praça com uma “mensagem de salvação” nas mãos a que não sabe o que fazer. A fuga prá sacristia, com profusão de vénias e incenso, torna-se então uma doce tentação.

É nesse ponto que estamos. E é sobre como sair deste ponto que os católicos são chamados a pensar neste Ano da Fé. Ninguém, nem todos juntos, com o Papa à cabeça, tem uma resposta feita. O esforço, para os católicos, tem que ser mesmo coletivo. 

Carlos Neves

Sim, nós podemos!

Diário de Coimbra, 29.dez.2013 Temos a noção de que atravessamos tempos únicos em que os desafios intranquilos duma nova era da Civil...