domingo, 4 de novembro de 2012

Mecanismos perversos


Diário de Coimbra, 4.nov.2012

Hoje já ninguém terá dúvidas: pese o excessivo número de casos de pequeno-burguesismo falido e o efeito de mimetismo dos que aparecem como “grandes” no marketing do estatuto, não foi o despesismo do cidadão comum que conduziu o país à crise económico-financeira – o povo é sensato. O que conduziu o país para este caos passa por um conjunto de mecanismos perversos que alguns poucos foram paulatinamente instalando e usando em seu favor com uma ganância desmedida, e que entrecruzam especulação financeira, clientelismo partidário, corrupção administrativa, negócios imorais e outros quesitos do mesmo teor. A rede fecha-se, por fim, por detrás de uma legislação dúbia que amarra os braços à Justiça.

Na doutrina social católica, a tradução desta situação expressa-se no conceito de “estruturas de pecado”. Curiosamente, talvez seja o conceito que mais se afirmou ao longo do papado de João Paulo II, partindo da sua quase negação até acabar como um critério chave para o aferimento moral de todo o terceiro milénio! O caso português, a política europeia, a economia mundial, provam-no à saciedade: há um mal objetivo que nasce das opções das pessoas e que, replicado em milhões de interações, cria estruturas que coartam a liberdade, fomentam os egoísmos, esmagam as legítimas aspirações à realização humana pessoal e coletiva e dividem os povos e as sociedades em exploradores e explorados, em opulência e miséria, contra – para os crentes - o desejo expresso pelo próprio Deus, segundo o livro bíblico do Deuteronómio: “no meio de ti não haverá pobres”. (E, já agora, diga-se, em abono da verdade, que nem sempre quem faz o papel de “explorado” está na margem dos pobres!).

Individualizar as culpas nesta rede é tarefa impossível; até porque, tirando alguns raríssimos casos de ilegalidade pura, os sistemas funcionam como um todo, tornando praticamente indiscernível a responsabilidade de cada um. Neste contexto, as leis contra a corrupção ou o enriquecimento ilícito (?!) acusam o problema, mas são impotentes para o resolver.

Urge, pois, corrigir os mecanismos perversos herdados do passado e evitar que outros se criem. Por isso, o acento da tarefa política, legislativa e penal não pode mais ser dirigido (exclusivamente) ao indivíduo, mas tem que ser dirigido às estruturas; e ainda que a economia seja urgente, o centro da atenção política tem que ser colocado na salvaguarda dos valores do bem comum, colocando-os à frente dos interesses individuais e corporativos. Mesmo que seja – e necessariamente vai ter que ser – contra os “direitos adquiridos” por algumas minorias, em favor dos direitos a adquirir pelo conjunto dos cidadãos, entre os quais o direito a não ser pobre.

Carlos Neves

Sim, nós podemos!

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