domingo, 24 de junho de 2012

2012-jun.-24
Ref.ª: 2.6
Amálgamas com mercúrio – Experiências sem ética

O programa de televisão intitulado “Cobaias”, emitido em 28 de maio passado, alertou-nos para as implicações mercantis e éticas subjacentes a uma experiência “científica” que, sob os auspícios da Universidade de Washington e da Faculdade de Medicina Dentária de Lisboa, decorreu em Portugal entre 1996 e 2004 e envolveu cerca de quinhentas crianças da Casa Pia de Lisboa.
Segundo os promotores, a experiência destinou-se a verificar se a libertação para organismo humano de mercúrio contido em amálgamas dentárias provoca consequências neurológicas, motoras, renais ou de memória. Mas, verdadeiramente, em causa estão as possibilidades de ser banida ou de ser mantida a utilização de amálgamas dentárias com mercúrio. Os potentados económicos digladiam-se: uns procuram manter uma quota do mercado, outros anseiam por tomar conta da totalidade do mercado.
Independentemente da polémica, qualquer pessoa se sente incomodada com o simples facto de haver instituições que promovam e investigadores que se disponham a aplicar certos produtos em crianças para avaliar os efeitos da sua libertação para o organismo humano, sem respeitar a sua fragilidade intrínseca, sobrecarregada, no caso concreto, por se tratar de crianças sob custódia institucional. De facto, considera-se, desde há muito tempo, que os menores e outros incapazes só devem ser incluídos na investigação médica se tal for necessário para promover a sua saúde e seja impossível realizá-la em pessoas legalmente competentes. Trata-se de uma concretização do princípio ético do respeito pela vulnerabilidade (cfr. artigos 6.º e 17.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, e n.º 24 da Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial).
Neste contexto, é ainda mais chocante que alguém defenda a bondade da experiência ao ser efetuada em crianças, precisamente porque é nelas que, habitualmente, os efeitos das substâncias tóxicas se manifestam com maior rapidez e nitidez.
Além disso, as crianças a que foram aplicadas amálgamas em dentes sãos obtiveram, nesta parte, algum benefício concreto?
Acresce a tudo isto o despudor de alguns ao referirem que as crianças participantes na experiência obtiveram uma vantagem assinalável ao receberem um tratamento gratuito que de outro modo estaria fora do seu alcance. Parece que a Casa Pia de Lisboa se podia eximir à sua obrigação de providenciar o tratamento dos dentes destas e de todas as crianças sob sua custódia, custasse o que custasse. Afinal, foi a Casa Pia de Lisboa que obteve os tratamentos destas crianças sem custos, que de outro modo teria de suportar.
Finalmente e embora houvesse muito mais para referir, é de assinalar o espanto que causa ouvir alguém, do alto da sua cátedra, afirmar que é perfeitamente admissível aplicar amálgamas com mercúrio nas crianças dos outros, uma vez que os seus dentes e os dos seus filhos também as têm. Assim se revela uma total inversão do respeito pelo princípio da justiça que consiste no reconhecimento da dignidade e dos direitos do próximo (cfr. Convenientes ex Universo, 35, Documento final do II Sínodo Ordinário dos Bispos, 1971).

Carlos Paiva
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-junho-24)


domingo, 17 de junho de 2012

2012-jun.-17
Ref.ª: 2.6
Do direito à segurança II
A segurança é um dos temas em que se reflete com maior intensidade a forma como evoluiu o pensamento das sociedades democráticas, alterando o próprio modelo de Estado que tínhamos por adquirido há largos séculos. Este, nas sucessivas conformações que apresentou, coloriu de forma diversa a noção de segurança, que situou em patamares tão distintos como tarefa do soberano ou direito constitucional, passando pelo direito à proteção.
Tal constatação pressupõe, também, uma gama de novas interpelações que agora nos são colocadas, sendo certo que o declinar do século XX continha já o esboço de questões tão prementes com as derivadas de uma globalização inevitável ou das múltiplas interpelações de uma sociedade de risco.
Porém, é o 11 de Setembro que marca uma mudança profunda de paradigma, com reflexos profundos nos conceitos de segurança externa ou interna e, até, na forma de encarar os desafios que são lançados ao Estado de Direito com a menorização do princípio da culpa e a valorização de conceitos como segurança preventiva ou medida de segurança.
Paralelamente, recrudescem as pulsões de uma sociedade em crise, em que a violência atingiu, por vezes, o extremo, colocando em causa os próprios alicerces do Estado. De Paris, em 2005, a Londres, em 2011, passando por Atenas, em 2008, a violência urbana tornou-se um fenómeno cíclico de sociedades em que a anomia se combina com a crise económica e social. A delinquência urbana, as incivilidades, a revolta urbana são faces diferentes de uma realidade complexa, em que fatores sociais e económicos, variáveis e dependentes da latitude e longitude, convergem, todavia, no apontar de denominadores comuns.
E se a teoria das probabilidades nos informa quão remota é a possibilidade de tais fenómenos nos afetarem diretamente, não deixa de ser uma realidade a forma como alteram a nossa forma de vida, criando uma especial atenção para a segurança e criando o campo ideal para o avanço de novas formas de controlo.
A segurança de que falamos é uma segurança coletiva, que se reflete no nosso viver comum, quer no âmbito externo, quer no interno. Existe, ainda, uma outra dimensão, que não pode estar afastada da análise do conceito de segurança, dimensão essa que vai ao encontro da sua função nuclear como direito positivo à proteção contra tudo o que viole a esfera pessoal, ou patrimonial, de cada um.
A segurança não é, não pode ser, apenas um direito à “garantia de exercício seguro e tranquilo dos direitos, liberto de ameaças ou agressões”, ou seja, mais uma garantia de direitos do que um direito autónomo. A sua concretização tem fundamento, e a sua causa de existência, nos próprios direitos pessoais enraizados na promoção do respeito da dignidade da pessoa humana. É um direito do cidadão e, paralelamente, é também um dever do Estado, a quem compete garantir os direitos e liberdades fundamentais e o respeito pelos princípios do Estado de Direito Democrático – al. b) do art. 9.° da CRP.
Porém, os dias que correm exigem uma outra configuração do direito à segurança com uma amplitude muito mais vasta do que a mera exigência da salvaguarda de pessoas e bens. Na verdade, a segurança coloca-se hoje em relação à forma de construir o futuro e de gerir as legítimas expectativas dos cidadãos, exprimindo-se no nosso quotidiano e na capacidade de satisfação das necessidades mais básicas que vão desde a alimentação á saúde. Necessitamos de saber aquilo com que podemos contar e se os planos que, com legitimidade, construímos ao longo da vida não são derrubados à nossa revelia e sem razão legítima. A segurança surge aqui como um sinónimo de garantia de procura de uma estabilidade mínima, que em primeira linha é ónus do Estado, com a qual o cidadão comum possa contar na gestão da sua vida.
Infelizmente os últimos anos constituem um paradigma do que é o ruir de muitos sonhos, alimentados legitimamente por cada um no decurso dos anos, e a substituição de uma sensação de conforto e segurança no futuro, pelo receio sobre o que este nos pode trazer. O direito á segurança é, também, e nesta perspectiva, o direito ao futuro.
José Santos Cabral
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-abr.-29)

domingo, 10 de junho de 2012

2012-jun-10
Ref.ª: 2.6
No “Dia das Comunidades”

No Dia das Comunidades (que a Pátria e Camões me perdoem a omissão), no mês em que a minha filha sairá para Inglaterra e no ano que se prevê ser o de maior emigração portuguesa em todos os tempos, falemos então de emigração.
O termo “comunidades” disfarça num rótulo sócio afetivo a dureza da experiência incarnada por 1/3 da população portuguesa. De relance, descubro-me como familiar, nalguns casos muito próximo, de portugueses que estão na França, na Suíça, no Canadá, nos Estados Unidos da América, na Venezuela, no Brasil, na Argentina … Como é gritante a ausência de um discurso coerente sobre a emigração num país onde todos temos o coração espartilhado pelo mundo! A Pátria (sempre a evoco!) ao menos deve-lhes duas palavras: uma de agradecimento pela honra de filhos, outra de pedido de perdão pela sua inoperacionalidade enquanto mãe.
Mas não são só os rótulos que mascaram a realidade. Hoje há duas novas máscaras: a ocultação estatística através de um mecanismo conceptual, dado que os portugueses residentes na União Europeia deixaram de ser considerados emigrantes; o reducionismo mediático à emigração de licenciados.
Quanto à saída de emigrantes, as conclusões até são fáceis: com ou sem estatística “oficial” (de facto, é para os países da União Europeia que sai a maioria dos portugueses), já se sabia – e o Secretário de Estado das Comunidades reafirmou-o vigorosamente há duas semanas – emigraram de Portugal nos últimos anos (pelo menos em 2011) entre 120 a 150 mil portugueses, o que faz com que 2011 tenha sido até ao momento o ano de maior emigração portuguesa! Maior do que em qualquer ano das décadas de 60 ou 70! E este ano, tudo aponta, a emigração ainda vai ser maior…
Por outro lado, a sublimação babada do “ai o meu filho está muito bem, é engenheiro na Holanda”, não apaga a violência da separação, a solidão de quem vai e de quem fica, a velhice desamparada, a instabilidade familiar, a sempre eterna saudade portuguesa, a falta do sol e dos cheiros a mato e maresia deste recanto do mundo. Mas, o pior de tudo, é que não é verdade: a maioria dos emigrantes viverá com menos pobreza do que em Portugal, mas continua a ser de portugueses pouco qualificados, mal remunerados, mais isolados que antes e, não raro, enganados, explorados e abandonados dos sistemas sociais.
Permita-se-me ainda, neste Dia das Comunidades e no ano em que a Obra Católica Portuguesa das Migrações comemora 50 anos, uma palavra de apreço pelo imenso trabalho desta Instituição, no passado e no presente, não só ao nível religioso, mas também, assumidamente, aos níveis do apoio social imediato, da denúncia e da intervenção política, tanto em Portugal como nos países de destino, nestes sobretudo através da vasta rede de capelanias que apoia.
Carlos Neves
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-jun-10)

domingo, 3 de junho de 2012


2012-jun.-03
Ref.ª: 2.6
ONDE TE COLOCAS PARA OLHAR A HISTÓRIA?
Antes, austeridade e sobriedade eram sinónimas de um estilo de vida equilibrado, uma alternativa a quem vivia apenas para o ter.
A crise, contudo, veio autonomizá-las e a austeridade, com as medidas impostas em muitos países, tem agora uma conotação negativa e destruidora. Passou a ser um castigo que é imposto de fora. As pessoas sentem-na como humilhação, mas também como um atentado à sua dignidade e à sua qualidade de vida. Em seu nome, os governantes permitem-se tudo, pois a centralidade da pessoa deu lugar à centralidade das finanças, dos mercados e do dinheiro. Os que ainda continuam a poder viver dignamente ficam incapazes de reagir perante a repetição massacrante dos mesmos slogans: “não há outra solução”; “vivemos acima das nossas posses” (governos e cidadãos, embora muitos mal tinham para comer!); “temos de honrar os compromissos”. Particularmente revoltante é este último. Para com os especuladores financeiros há compromissos a pagar com subserviência e em prazos indiscutíveis. Mas para as pessoas, o que há é perda maciça de emprego, corte nas reformas, ordenados minguados e supressão inesperada dos subsídios de Férias e Natal com que se contava para satisfazer compromissos pessoais já adquiridos e inadiáveis. Chega-se à imoralidade de recusar milhares de bolsas de estudo, porque os pais têm dívidas ao fisco ou à Segurança Social. De constitucionalidades nada sei, mas castigar assim filhos inocentes é voltar à selva onde “se não foste tu, foi o teu pai”. Além de que, apesar de muitas destas dívidas já estarem saldadas, mantêm os seus efeitos nefastos por ineficiência da Segurança Social.  
E o que nos trouxe este exagero de austeridade? Cortes cegos nos serviços públicos, baixa de salários, diminuição da proteção social, maior miséria, mais desemprego, fuga dos melhores cérebros, falta de espaço para jovens talentos, delapidação da confiança. Só há tempo para pensar em sobreviver.
Mas o que talvez seja mais grave é a interiorização da austeridade como única solução. Assim torna-se o ponto de referência de que todas decisões e dislates decorrem normalmente.
Se em vez de austeridade, olhássemos todos, sobretudo os dirigentes políticos internacionais e nacionais, mais numa perspectiva de sobriedade, certamente surgiriam propostas diferentes. Os sacrifícios, necessários, seriam sentidos como obrigação de cidadãos, por opção pessoal e não como imposição externa que escapa ao seu controlo.
A sobriedade é uma atitude construtiva. Não a sobriedade pela sobriedade, mas como amoroso estilo de vida, que se deve exigir preferentemente aos principais responsáveis do governo ou chefias, públicas ou privadas, porque lhes compete dar exemplo, motivar e mobilizar todos os cidadãos. A sobriedade dá um olhar novo sobre a realidade, faz ver o outro como colega e não como concorrente a abater. “Sabe criar espaço para o irmão levando os fardos um dos outros e rejeitando tentações egoístas, suspeitas e ciúmes” (João Paulo II). Ajuda a moderar instintos consumistas, a discernir o necessário, o conveniente e o supérfluo, a lutar pela justiça social, a fazer escolhas criteriosas, a prescindir de um nível mais elevado de vida para que todos atinjam o patamar mínimo exigido pela dignidade humana diminuindo as desigualdades escandalosas. É promotora da coesão social, porque é aplicável a todos, supera os egoísmos pessoais, grupais e nacionais, e torna as relações sociais mais justas e equitativas.
Mas desta realidade não somos todos nós os grandes culpados? O que temos feito como cidadãos de base, do país e da Europa, para tornar a crise uma oportunidade para superar esta organização social iníqua? A história só se torna mais humana com o esforço de todos e não de “iluminados pseudolíderes” que de humanidade pouco sabem.
Será isto utopia? Mas o sonho comanda a vida ou já não seremos capazes de sonhar?

José Dias da Silva
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra em 2012-jun.-03)

Sim, nós podemos!

Diário de Coimbra, 29.dez.2013 Temos a noção de que atravessamos tempos únicos em que os desafios intranquilos duma nova era da Civil...