domingo, 29 de janeiro de 2012

2012-jan.29
Ref.ª: 2.6
Taxas moderadoras ou copagamentos?

Após um mês de aplicação da nova legislação sobre taxas moderadoras, espero que estejam resolvidas as dúvidas de interpretação e definidos os procedimentos. Uma ligeira reflexão sobre o tema parece-me oportuna.
As taxas moderadoras, herdeiras das comparticipações pagas pelos subscritores das caixas de previdência, foram previstas, inicialmente, como meios “tendentes a racionalizar a utilização das prestações” e eram uma exceção à regra geral da gratuitidade. Depois, passaram a ter o “objetivo de completar as medidas reguladoras do uso dos serviços”, invertendo-se a regra geral, ou seja, a isenção de taxas moderadoras passou a ser a exceção.
Em qualquer caso, subjaz à institucionalização das taxas moderadoras a convicção de que os cidadãos tendem a consumir cuidados de saúde de modo irracional e excessivo, o que convém refrear através de barreiras económicas.
A atual regulação desenvolve o princípio de que “as prestações de saúde” do SNS “implicam o pagamento de taxas moderadoras” e muda o paradigma ao enfatizar as situações de “dispensa de pagamento” em detrimento das isenções em função de características pessoais.
Preveem-se alguns mecanismos de racionalização como na dispensa de pagamento nas urgências hospitalares, quando o doente é encaminhado através da rede de cuidados de saúde primários ou é internado através da urgência. Mas, à luz da justiça e da equidade, muitas outras situações mereceriam a isenção. De facto, que moderação está nas mãos do doente a quem são prescritos exames (análises, radiografias, ecografias ou outros) para fundamentar o diagnóstico, ou que tem de voltar à urgência devido a inapropriada avaliação clínica em atendimento anterior ou quando vai ao centro de saúde mudar o penso na sequência de uma cirurgia? Será que o doente pode promover a contenção na requisição de exames complementares, deve abster-se de voltar à urgência apesar de se sentir pior depois do primeiro atendimento ou deve mudar o penso em casa, prescindindo dos cuidados de enfermagem? Nestes casos e numa miríade de outros semelhantes os pagamentos dos doentes parecem mais copagamentos do que taxas moderadoras. E afinal quem deve e pode ser moderado? Que medidas tomar para reduzir as falsas urgências, as consultas desnecessárias ou os exames excessivos? É verdade que os eventuais desperdícios e as ineficiências do SNS se combatem por esta via?
Em saúde, pobre é quem precisa de cuidados e rico é quem consome cuidados desnecessários, desmedidos ou inúteis com os recursos de todos. Seria legítimo que a estes últimos fosse cobrado o custo real dos cuidados. O discernimento destas situações há de ser alcançado com base em critérios padronizados, mas dependentes de apreciação caso a caso. Dir-me-ão que este caminho é muito difícil e incómodo para quem decide. Mas desde quando se pode, legitimamente, pôr de lado a justiça e a equidade por ser difícil ou incómodo concretizá-las?
Carlos Paiva
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-Janeiro-29)

domingo, 22 de janeiro de 2012

2010-jan.-22
Ref.ª: 2.6
O Tempo do Direito

As sociedades laicas, que inventaram os Direitos Humanos -edificados, pela primeira vez na História, a partir dos direitos do indivíduo - continuaram, por muito tempo, a manter a chama do dever como exigência de cida­dania. Porém, as nossas sociedades de consumo-comunicação de massas deixaram de exaltar sistematicamente os manda­mentos difíceis, funcionando, quantas vezes, fora do dever e da obri­gação moral exigente.
Reconhecemos, ainda, os deveres negativos, como não roubar, não matar, não causar sofrimentos. Mas já não o faze­mos quanto aos deveres positivos regulares e sistemáticos. Correlativamente, desejamos normas morais indolores à “la carte”. Admitimos a possibilidade de clonar, de ajudar a morrer, de impedir de nascer, de contratar a paternidade, de manipular, ao nosso gosto, as leis da Natureza, etc. A Lei é adapta-se aos nossos interesses individuais e perdemos em termos de ética da responsabilidade, e solidariedade, o que, ilusoriamente, ganhámos na afirmação egocêntrica do Homem como centro do mundo, olimpicamente indiferente ao bem comum.
A ausência de valores, ou o seu relativismo, tornou comum o recurso aos tribunais como definidores dos crité­rios que deixaram de estar inscritos nas consciências. A justiça tornou-se uma referência do quotidiano e é aos tribunais que se pede, muitas vezes, a definição do que é certo e errado, pois que tal tarefa não pode ser alcançada num universo de relativização de valores, típica do denominado pós-modernismo.
A própria família clássica não resistiu à usura do tempo, surgindo um novo modelo em que se coloca, muitas vezes, em crise o cumprimento de funções essenciais, nomeadamente educativas, havendo a necessidade de recorrer a um terceiro (o juiz) para atenuar as tensões existentes no seu núcleo mais íntimo.
O recurso ao tribunal surge, cada vez mais, como uma forma de o indivíduo afirmar a sua titularidade de direitos, tentando obter o reconhecimento da sua identidade, do seu território e da sua própria individualidade. Acresce que o aumento de tal apelo aos tribunais, como forma de regulação social, além de favorecido pela ausência de referências éticas e morais, foi impulsionado pelo desapa­recimento dos mediadores sociais tradicionais, aos quais era reconhecida uma autoridade natural - familiares, religiosos, sindicais e políticos -, assim como pela desumanização das grandes concentrações urbanas e pela quebra nas relações interpessoais.
Porém, a resposta a muitas das questões para as quais se recorre aos tribunais deve estar, em primeira linha, na nossa reta consciência, tendo a coragem de assumir valores que são imutáveis e que estão para além da voragem do tempo. Como afirmava Soljenitsyne uma sociedade em que não existe uma balança jurídica imparcial é uma coisa horrível. Mas uma sociedade que não possui senão uma balança jurídica não é verdadeiramente digna do homem.
José Santos Cabral
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-Janeiro-22)

domingo, 15 de janeiro de 2012

2012-jan.-15
Ref.ª: 2.6
Solidariedade é determinação

Ensina a Didaskalia cristã (séc. III) que “é preferível morrer de fome do que aceitar algo dos ricos que cometem injustiças”. A força deste texto está em que muitos cristãos eram tão pobres que morreriam mesmo de fome se não aceitassem tais esmolas. Por isso, provavelmente aceitavam (sendo conhecidas honrosas exceções), dando expressão concreta ao grito de Amós uns nove séculos antes: “os tempos são tão maus, que o mais prudente é ficar calado”. E quem poderá julgar aquele que cala a sua dignidade a troco de um pedaço de pão?! Se “a esmola queima a mão do pobre” (Helder Câmara), a fome queima-lhe a vida toda.
Vivi o último Natal mergulhado nestes pensamentos, numa dolorosa tensão interior entre a defesa da dignidade dos empobrecidos e a aceitação “cautelosa” de tantas ações solidárias. Mas, talvez agora, passada essa onda de tanto bem fazer aos pobres, ou de tanto pedir a favor das muitas associações de bem fazer, possamos falar mais serenamente.
Desde logo, a solidariedade não é um comportamento, menos ainda um espetáculo, ou alguma campanha, e muito menos ainda um promissor campo de negócios, com vantagens publicitárias e fiscais. A solidariedade é uma atitude que gera permanentemente comportamentos de amor, mas nunca é redutível a comportamentos ocasionais, nem sequer a um somatório dos mesmos. A solidariedade “é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum” (João Paulo II); é um modo de estar na vida e no mundo; de ser pessoa e cidadão e marcar as estruturas sociais, económicas, políticas e culturais com essa atitude de proximidade amorosa e libertadora dos outros, a partir dos outros e com os outros. O resto corre o risco de ser solidariedadezinha, amesquinhamento da dignidade do outro.
Evidentemente, a solidariedade como estilo de vida exige partilha de bens. E como nos lava a alma conhecer tanto gesto generoso de partilha! Aceito mesmo a distribuição festiva de cabazes de natal; quisera até que fossem “cabazes” esbanjadores! Mas a solidariedade não pode omitir-se da luta pela justiça e da transformação das estruturas que empobrecem muitos a favor de uns poucos. E como dói também na alma ver tantos organismos com real poder social, económico e político mais preocupados em publicitar os seus “cabazes” (!) do que em estudar e realizar medidas consistentes de combate à pobreza. Essa, sim, é a verdadeira medida da solidariedade que lhes é exigida. Porque a cada um é pedido conforme o que lhe foi confiado.

Carlos Neves
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-Janeiro-15)

domingo, 8 de janeiro de 2012

2012-jan.-08
Ref.ª: 2.6
A(s) Pessoa(s) e o Resto

Um dos paradoxos, com que se tece o mistério do homem, está no contraste entre aquilo em que acreditamos e como o vivemos, a nível pessoal e institucional. A maioria das atuais legislações garante a dignidade da pessoa como fundamento do ordenamento social. Contudo, a prática é bem diferente, mesmo que o primado da dignidade humana seja indiscutível, porque ela “é o bem mais precioso que o homem tem, graças ao qual transcende em valor todo o mundo material”, o que acarreta “a prioridade da ética sobre a técnica, o primado da pessoa sobre as coisas, a superioridade do espírito sobre a matéria.” (João Paulo II).
A primeira consequência é a centralidade da pessoa, uma de tantas expressões que a usura da rotina e o comodismo alienante vão mirrando no seu conteúdo substancial. Torna-se, por isso, importante recuperá-la e valorizá-la, especialmente, na sua concretização prática.

A nível individual, implica que cada um se assuma como protagonista, sujeito, livre e consciente, da construção de um futuro coletivo, sempre num diálogo dialético que respeite o princípio da subsidiariedade, segundo o qual cada um (pessoa ou grupo) deve assumir plenamente, na sua área de influência e de poder, aquilo e só aquilo que lhe compete. Assim não só se cimenta uma forte coesão social como nos enriquecemos com os talentos, únicos e irrepetíveis, característicos de cada cidadão.
A nível institucional, exige a criação e promoção de uma sã cidadania. Doutrinados para a estabilidade e o medo perante a mudança e o conflito (no sentido agónico) político, impostos Estado Novo, continuamos hoje em democracia reféns desses “brandos costumes”.
A maioria fica-se pela democracia formal (de votar/delegar); outros insistem na democracia participativa, para a qual pouquíssimos estarão preparados. Não só vivemos alegremente manietados pela partidocracia, conformados pela fatal rotatividade do poder e anestesiados pela crescente desconfiança em governantes incapazes de projetos mobilizadores, como somos mediaticamente formatados pelos mesmos debates, pelos mesmos opinadores e pelos mesmos argumentos, cegos para a criatividade e para a mudança.
É tempo de, sobretudo a escola, os média, as igrejas e movimentos cívicos, formarem para o bem comum numa nova dinâmica que valorize a criatividade e inovação, o pluralismo e abertura aos outros, e forme no hábito de pensar prospectivamente de modo a sermos construtores de um futuro que não seja mera repetição doentia do presente falido. 

José Dias
Membro da Comissão Diocesana Justiça e Paz
(Publicado no Diário de Coimbra de 2012-Janeiro-08)

Sim, nós podemos!

Diário de Coimbra, 29.dez.2013 Temos a noção de que atravessamos tempos únicos em que os desafios intranquilos duma nova era da Civil...